sexta-feira, junho 03, 2011


Ainda sobre DSK



Apenas para vossa informação: leiam e meditem sobre este artigo relativo ao ex-patrão do FMI, o que não significa que estejamos necessariamente de acordo com o respectivo conteúdo.

Sobre a política económica de Dominique Strauss-Kahn e a sua morte política

por Yanis Varoufakis [*]

O que se segue é acerca do significado económico e político da prisão
de Dominique Strauss-Kah (DSK), o presidente do Fundo Monetário
Internacional. Nada direi acerca dos méritos (ou falta deles) das
acusações contra DSK. Todos os casos de alegado assalto sexual contra
homens altamente colocados apresentam duas exigências igualmente
importantes (embora muitas vezes contrapostas) a todos nós: a
importância de respeitar a aflição da alegada vítima (bem como de
respeitar a sua luta com o espectro do terror que todas as mulheres
enfrentam quando se decidem a acusar um homem poderoso) e a obrigação
de respeitar a presunção de inocência do acusado. É neste espírito que
nada direi acerca do caso e concentrar-me-ei numa parte importante da
política económica contemporânea.

Normalmente, a "eliminação" de um presidente do FMI não teria senão um
efeito passageiro sobre a instituição. Suspeito que o afastamento de
DSK será diferente. Não se trata apenas de DSK ser um peso pesado que
pressionou o FMI a um modo diferente de pensar (adoptando uma
abordagem mais subtil quanto às causas mais profundas de crises).
Muito mais significativa é a maneira como ele parece entender o que
faz a economia global funcionar.

Para abreviar, darei um exemplo pungente – um exemplo cujo significado
transcende todas as anedotas acerca da maior "condescendência" que DSK
teria demonstrado durante as negociações UE-FMI-governo grego sobre os
termos dos empréstimos maciços de salvamento da Grécia. Para reforçar
meu argumento vou citá-lo directamente, ao invés de basear minha
argumentação no ouvi dizer.

Em Janeiro de 2011 DSK foi entrevistado por uma jornalista da BBC
Radio 4 no contexto de um documentário sobre a história do FMI. [1]
Próximo do fim do programa, ouvi a voz inconfundível de DSK a
responder a uma pergunta da jornalista sobre como a economia global
pode ser reconfigurada na sequência da Crise de 2008. A sua espantosa
resposta foi:

Nunca no passado uma instituição como o FMI foi tão necessária como
hoje ... Keynes, sessenta anos atrás, já previa que era necessária,
mas era demasiado cedo. Agora é o momento de avançar. E penso que já
estamos a fazê-lo!

Isto foi, na minha opinião, uma declaração programática explosiva,
vinda do presidente do FMI. A que é que se estava a referir? Estava,
naturalmente, a referir-se ao argumento poderosamente colocado por
Keynes (no contexto da conferência de Bretton Woods em 1944) de que um
sistema de taxas de câmbio fixas não pode sobreviver por muito tempo
sem um mecanismo automático que trate (a) de excedentes comerciais
sistemáticos e (b) de défices comerciais sistemáticos como os dois
lados da mesma moeda problemática.

A recomendação de Keynes era que, para tratar do efeito
desestabilizador do sistema de défices e excedentes, o mundo precisava
de um mecanismo que os reequilibrasse pela transferência de excedentes
dos países excedentários para os deficitários. Em suma, o mundo
precisava de um Mecanismo de Reciclagem de Excedentes (Surplus
Recycling Mechanism, SRM). Clique aqui para um extenso, embora
académico, relato dos argumentos em favor de um SRM.

Isto era, muito naturalmente, uma sugestão radical. Os Estados Unidos,
como era de esperar, rejeitaram a proposta – não, contudo, porque os
new dealers no poder naquele tempo não reconhecessem a importância de
um SRM a nível global, mas porque não gostavam da ideia do automatismo
da reciclagem (que Keynes estava a propor). [2]

Como tenho explicado alhures a função de um SRM (e as consequências da
sua ausência ) com algum pormenor (ver aqui por exemplo), desistirei
de repeti-las aqui. Basta destacar a significância política e
económica do endosso de DSK à sugestão de Keynes e, em particular, a
sua declaração de que Keynes estava à frente do seu tempo mas que é
oportuna agora após o Crash de 2008: "Agora é o momento de avançar. E
penso que estamos prontos para fazê-lo!".

Se o leitor precisar de um pouco mais de persuasão sobre a
significância daquela declaração, considere isto: No contexto europeu,
a declaração de DSK significa que, do seu ponto de vista, a Alemanha é
um problema para a eurozona na mesma medida que a Grécia. Pois se
excedentes sistemáticos têm a capacidade de minar uma área de divisa
comum (ou de câmbios fixados), então o modelo de desenvolvimento da
Alemanha está a minar a eurozona tanto quanto os défices crónicos da
Grécia.

Penso que DSK fez uma excelente observação. Mas o problema não é se o
leitor concorda ou não comigo. A questão é a morte política de DSK (o
anúncio da qual pode revelar-se prematuro) transmite um significado
sem precedentes dentro e fora da Europa.

Dentro da Europa, a perspectiva de um presidente francês que acredita
fortemente (e está pronto a apoiar a sua convicção com uma formidável
panóplia analítica) que a eurozona não pode sobreviver sem um
Mecanismo de Reciclagem de Excedentes (que canalize excedentes alemães
para países em défice sob a forma de investimento produtivo) tem o
potencial para alterar radicalmente a agenda política e económica do
continente. Tal presidência, em particular, apresentaria um
contraponto estimulante à actual incapacidade mental para encarar as
causas mais profundas da crise do euro e para reconhecer, finalmente,
que a crise da dívida é um sintoma, não a causa, da cadeia de
fracassos que ameaça a própria existência da eurozona.

Mais amplamente, o debate global acerca do que fazer com os crescentes
excedentes da China também está destinado a tomar uma rota diferente
conforme o presidente do FMI acredite, como DSK declarou fazê-lo, na
importância de criar mecanismos automatizados, supranacionais, para
reciclar excedentes (em oposição à insistência de Tim Geithner de
desequilíbrios globais serem tratados apenas com ajustamentos nas
taxas de câmbio).

Em suma, DSK é um dos raros responsáveis a encabeçarem uma instituição
extremamente poderosa que possuem visões refrescantes atípicas de
cinzentos burocratas mastigadores de números. Sua passagem política
pode ficar desapercebida simplesmente porque o seu mandato no FMI foi
curto e a sua presidência francesa agora é improvável que se
concretize. Contudo, suspeito fortemente de que possa revelar-se como
o mais significativo presidente francês já visto, bem como o mais
influente presidente que já houve no FMI.

1. BBC Radio 4, Inside the IMF , Part Two, broadcast on 17th January 2011.
2. Os Estados Unidos demonstraram que não rejeitaram a ideia da
própria reciclagem de excedentes ao implementarem o Plano Marshall (um
exemplo fabuloso de reciclagem maciça de excedentes) e ao tomarem uma
miríade de outros passos entre 1947 e 1970 para reciclar uma ampla
percentagem de excedentes americanos na Europa e no Japão. O que
rejeitarem foi a ideia de uma instituição supranacional que fizesse a
reciclagem foram do controle político de Washington.

[*] Professor de Teoria Económic da Faculdade de Ciências Económicas
da Universidade de Atenas. Autor de: The Global Minotaur: The True
Origins of the Financial Crisis and the Future of the World Economy
(Zed Books, 2011); (com S. Hargreaves-Heap) Game Theory: A Critical
Text (Routledge, 2004); Foundations of Economics: A Beginner's
Companion (Routledge, 1998); e Rational Conflict (Blackwell
Publishers, 1991).

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